terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

Simplicidade

Por Karina Lubascher Miragaia,
dedicado a Bárbara Dias Rigotti

“Meu Deus, como essa ladeira cansa. Nem me diga, menina, nem me diga...”. Foi assim, numa ida à padaria, suada e cansativa, no fim da tarde, na trégua do calor, que surgiu uma conversa daquelas que significam. Ultimamente, tenho tido várias conversas desse tipo, desse tipo de conversa na qual tudo se encaixa, tudo vale a pena, na qual tudo significa. Talvez pela pessoa, pelo assunto, pelo momento. Talvez pelos três, e os três interligados. Existem pessoas que simplesmente sacam, existem assuntos que simplesmente são, existem momentos que simplesmente permitem. Ultimamente, não só conversas, mas muitas coisas têm sido das que significam. Significam em silêncio, em segredo, no escuro, no sussurro, na madrugada, num triz de segundo em que você consegue perceber, entender. Mesmo expondo pro mundo, parece que continua guardado a sete chaves. Ninguém viu, ninguém vê”, foi o que ela disse. Perfeito. Conversas que significam são assim, conversadas no silêncio. E existem pessoas que simplesmente sacam.

Falávamos sobre teatro, cinema, sobre livros. Culpa do momento. Não daquele momento como instante, mas do momento em que se vive. Fala-se do que se gosta, do que se entende, do que ser quer, mas fala-se com paixão do que se vive. Estávamos vivendo aquilo, falávamos, portanto, sobre aquilo. E falávamos com paixão.

“Os filmes que mais mexem comigo são aqueles reais, cotidianos, sem muito alarde, sem muito Hollywood...”. Curioso, acabáramos de ver um daqueles explosivos, com grandes estrelas, muito Hollywood e em quase nada sincero. “Daqueles em que a trilha fala, a luz fala, a fotografia fala, sem ninguém precisar falar demais... Daqueles que ninguém entende? Exato”. Mais do que daqueles que ninguém entende, daqueles que, por entenderem demais, rejeitam. O excesso de realidade choca, incomoda. Confortável é rejeitá-la. Confortável é identificar-se com o amor nobre e quase nada humano de Crepúsculo do que com o anseio, esse sim, excessivamente humano de Closer. Engraçado como odiamos ver-nos representados na arte sincera. Mais do que odiamos, nós ignoramos. “Filme ruim, parado, confuso, muito palavrão, sexo, traição”. Como se a vida não fosse assim.

“Gosto também daqueles autores que, num simples descrever de olhar, de toque, de expressão, te inserem numa complexidade tão real de personagens, que parece que tudo aquilo sempre existiu”. Aquele tipo de livro que não precisa da construção do “era uma vez”, porque só no descrever da fala, do gesto, você já entende o passado, o presente, a mania, o trauma, a realidade. “Detesto livros de auto-ajuda por isso, são tão irreais...”.

“É bem esse o trabalho do ator, sabe. O esforço, o estudo, o talento, tudo pra representar o comum, o banal, o corriqueiro. Isso é extremamente difícil de fazer. Tão mais fácil se jogar gritando no chão ao receber uma notícia ruim do que um simples olhar pro vazio, um calar, e um tapar a boca com a mão...”. O ator, o bom ator, é alguém a se admirar, bem como a capacidade que ele tem de encarnar o real. Afinal, quem é que realmente tem voz pra gritar com uma notícia daquelas, das bem ruins? Muito mais admirável é ver que essa encarnação do real, da família desintegrada, do pai que tem amantes, da mãe desiludida, desgostosa, do filho drogado, do casal que não mais se ama, que nem sequer mais se toca, do casal que finge, do marido que bate, da amante, do adolescente que quer ser aceito, do padre que manipula, do velho amargurado, do amor que não dura pra sempre, do mentiroso, do egoísta, do mesquinho, do confuso, do indeciso, da vida como ela é, da personagem que somos todos os dias, que somos sem esforço algum, que somos simplesmente porque humanos somos, essa exata encarnação do banal e do real é muito mais admirável porque é resultado de um esforço enorme da parte do ator. Admirável e curioso. Curioso saber que é mais fácil interpretar humanos tão perfeitos, tão irreais, humanos tão inumanos, tão assim, tão inexistentes. Mais curioso ainda é ver como preferimos identificarmo-nos com eles, os inexistentes. Curiosíssimo é como alguns rotulam de “chocante, chata, confusa, mentirosa” a arte que revela a realidade escancarada de quem eles exatamente são. “A arte imita a vida, não um circo, e eles ainda não entendem...”.

Acho que conversas que significam são assim, como a arte. Como a boa arte, simples, sem alarde, sem muito Hollywood, reais. Simples como a vida. Simples assim, como numa ida à padaria, suada e cansativa, no fim da tarde, na trégua do calor...e existem pessoas que simplesmente sacam.