sexta-feira, 29 de março de 2013

Ao traído

Por Karina Lubascher Miragaia 

Nas vésperas da tua morte te trai, te neguei e teu olhar percebeu. Eu sei que viste. Tua graça me apunhalou o coração e amargamente eu chorei. Não quero mais ver-te. Não posso te pedir perdão, agora estás numa cruz. Morres sem saber que te amo, sempre te amei. Ah, minha alma está profundamente dolorida, minha cara se mostra a mim, meu erro, minha miséria, não quero encarar-me. Quero olhar pra ti como antes olhava, quero que me chames de novo, como na primeira vez que me encontraste no mar, sujo, suado, cansado. Mal sabias que eras tudo que eu precisava. Cristo, o filho do Deus altíssimo, eu sabia. Sabia que não tinha pra onde ir, a eternidade repousava somente em ti. Minha alma repousava somente em ti. Mil vezes jurei pra comigo, tinha certeza de que te seguiria pra sempre. Jurei pra ti, com clareza, com certeza. Tinha descoberto a vida. Tu me foste arrancado à força, eu te arranquei de mim. Vacilei quando precisaste e eu sei, eu sei que viste. Olhaste pra mim naquela hora, como se sempre soubesses da minha fraqueza em ti. Minha fé foi fraca na presença do meu Salvador. Chorei amargamente. É isso que faço, é isso que sou, te traio na tua morte e morres sem saber quão dolorido estou. Volta a encontrar-me! 

É noite, por horas é noite, por dias é noite. Há três dias te foste e minha alma anoiteceu. Não me despedi de ti. Fico a beira do mar, voltei a fazer o que fazia, mas nunca mais serei o mesmo. Não me acho mais, fui embora quando foste embora. Estou só e nada mais me contém. Cada vez que o sol se põe no mar, me lembro de ti. 

Daqui três dias voltarás e lá na praia, mais uma vez, nos encontraremos. Olho-te de longe do barco, corro contra as ondas pra te encontrar. Comes em silêncio, olho pra ti, sei quem és. Nunca mais voltaremos a falar naquilo? Voltaremos a ser os mesmos? Não tenho mais coragem de falar contigo, mas sou teu pra sempre. Só tenho promessas vazias pra te dar, não tenho mais forças de te seguir, mas sou teu pra sempre. Falas comigo, me chamas pra caminhar. Olho pra ti, não tenho o que dizer. Com as ondas batendo nos pés, só o mar falando, foi aqui que me achaste a primeira vez e aqui não tenho mais intimidade comigo. Parecem anos desde que estávamos juntos e eu tinha certeza de ti. Pergunta-me se te amo. Por quê? Sabes que não, não do jeito que me amas, se é que ainda me amas. Te amo, do meu jeito, te respondo. Te amo sem atitudes e já há três dias sei disso. Quero perguntar-te da morte, quero contar-te de mim, quero abraçar-te por teres voltado, quero pedir-te perdão. Não tenho coragem. Pergunta-me se te amo de novo. O que queres provar? Te amei sem sequer palavras naquele dia. Pergunta-me de novo. 

Morri junto contigo naquela cruz, morreu minha certeza, mas quando voltaste, voltei contigo. Voltei incerto, agora só me acho em ti. Fazes isso comigo, me mostras minha traição pra depois ressuscitar-me. Graça, o que és? Faz-me morrer todo dia, chorar amargamente, leva-me ao fundo de mim até que não tenha forças pra retornar. Sinto saudades de ti por três dias, até que voltas e nos encontramos na praia. Olha-me profundo na alma, sabes que te nego. Todo dia te nego. Quebra-me. Sujo teu nome, mas me sujas mais forte com teu sangue, até que eu fique limpo. Graça que não se salva da cruz, mas que promete o Paraíso. Agora me pedes pra cuidar dos teus. Ainda me amas. Retorno à vida. Graça, o que fizeste? 

Minha fé será forte mais uma vez na presença do meu Salvador. Meu coração será pra sempre teu. Olharei nos teus olhos de novo, chamarei teu nome e minha alma descansará de uma vez por todas em ti. Brilhas como mil sóis, crucificado. Brilhaste na cruz e todo o mundo ficou em trevas por ti. Deus que sofre, Deus que morre, o reino é teu. É por causa do teu amor que minha alma vive. Pra sempre te aguardarei à beira do mar, promessa que como candeia que brilha em lugar escuro, até que o dia clareie e a estrela da alva nasça em meu coração. Eu sei que virás mais uma vez e pra sempre estaremos juntos. 




- Eu não achava que acabaria assim. 
- Fim? Não, a jornada não acaba aqui... A morte é apenas um outro caminho, que todos temos que tomar... A cortina cinza desse mundo se enrola e tudo se transforma em vidro prata. E aí você vê... 
- O que, Gandalf? Vê o quê? 
- Praias brancas... e, além, os campos verdes longínquos, sob um belo amanhecer... 
(O Senhor dos Anéis: O Retorno do Rei [filme]).


segunda-feira, 28 de maio de 2012

Eu não escolhi nada

Por Karina Lubascher Miragaia

[...] e não vendo a ninguém senão a mulher, perguntou-lhe: mulher, onde estão os teus acusadores? Ninguém te condenou? Respondeu ela: ninguém, Senhor. E disse-lhe Jesus: nem eu te condeno; agora vai e não peques mais.

“Sabe aquelas vezes em que você decide que vai começar a separar um tempo para ler a Bíblia todos os dias, certinho, e parece que o inferno baixa? Dá preguiça, sono, aparecem vários compromissos... Então, meu filho, não é o inferno que baixa, é Deus mesmo, te mostrando que, quando você decide fazer algo por ele, por suas forças, você não vai conseguir”, foi o que eu ouvi certa vez em um culto. Em um Cristianismo onde escolhas tornaram-se sinônimo de santidade, é exatamente isso que nos falta ouvir.

Certa vez, uma mulher flagrada em adultério foi levada à presença de Jesus pelos religiosos da época. “Foi pega em flagrante, a Lei diz que tem que ser apedrejada!”, foi o que eles disseram então. “Tem que ficar de banco!”. Já ouviu, né? Jesus senta na areia e começa a desenhar no chão com as mãos. Aí, então, ouvimos o que talvez foi uma das respostas mais geniais já antes dadas: sendo assim, fiquem vocês todos de banco! “Quem nunca pecou, atire a primeira pedra”. Acho que podemos sentar aqui mesmo com Jesus e ficar o resto da vida desenhando com ele na areia, pensando.

Depois de um tempo, sem reação, todos vão embora e os gritos param, o burburinho passa, os curiosos voltam para suas casas, os religiosos voltam para os seus métodos e ficam na praia somente Jesus, a mulher, o barulho das ondas, os pescadores no mar ao fundo e, hoje, eu e você.
­—  Onde estão teus condenadores? - disse ele.
  Não há mais ninguém aqui, mestre.
  Ninguém te condenou?
  Não.
E esta foi então a resposta mais genial que já ouvimos:
  Eu também não te condeno. Agora vá e não peques mais.

Entretanto, lá atrás, os pescadores, longe nos barcos, não puderam ouvir muito bem a resposta de Jesus. Alguns deles conseguiram discernir somente a primeira parte. Esses então voltaram para casa felizes e continuaram sua vida de pecado. “Jesus não me condena”. Esses são os que tomam a graça por barata. Não conseguiram sentir o peso da cruz, não chegaram perto do Mestre o suficiente pra ver o suor na sua face, não sentiram o cheiro do sangue escorrendo.

O restante deles, ao contrário, pôde ouvir somente a segunda parte: “vá e não peques mais”. Voltaram para casa sombrios e até hoje tentamos conter o estrago que fizeram. São esses os que sentiram o peso da cruz e a julgaram leve demais. Os que esfregam o chão até que nenhuma marca de sangue seja mais vista e seu cheiro não seja mais sentido. São esses o que precisam ouvir o que eu ouvi naquele culto. Os grandes mascarados do Reino, os que não erram, simplesmente pelo fato de terem escolhido não mais errar. Santidade confundida com fazer escolhas certas. Não se engane: mais tarde, essas escolhas acabarão por substituir o peso da cruz. A escolha pelo certo que dá a sensação de mérito, a escolha pelo martírio que dá a sensação de redenção. Sensação de peso. São os nobres demais para deixar Jesus carregar a cruz sozinho, são os limpos demais para deixar que a vida cheire a sangue.

Mas aquela mulher estava perto o suficiente para ouvir a resposta inteira de Jesus. E ficou sentada na areia até o sol se por, olhando pro mar, e então compreendeu. Depois do pecado, depois da condenação, depois do choro, depois da dor, depois do silêncio, os que ficam suficientemente perto do Mestre então também ouvem: “a justificação vem para aqueles choram por vergonha de olhar nos meus olhos”. A santidade é medida pela capacidade ao arrependimento. As mãos calejadas pelo pecado e o coração que sente saudade do Deus distante não têm força para carregar a cruz junto com Cristo.

Tempos mais tarde, outra pessoa também entendeu isso: um publicano, pecador e traidor, estava no templo junto com um religioso. Um daqueles que estavam aquele dia na praia e que acabou por ouvir dizer a resposta de Jesus à mulher, mas pela boca dos pescadores que ouviram somente a segunda parte. No templo, os dois oravam. O religioso, com gratidão, gratidão por ter escolhido certo, por ter escolhido não estar junto com aqueles pecadores lá do mundo, por ter escolhido estar aqui, são e salvo, na igreja, sentindo o peso do mérito. O publicano, esse não olhava pro céu. Sentou lá no fundo e não levantou as mãos na hora do louvor. Não cantou, mas bateu no peito e sentiu vergonha. “Tem misericórdia de mim, que sou pecador”, ouvi como num sussurro. Terminou o culto, fomos todos embora, mas somente um, disse Jesus, pisou em casa redimido: aquele que desviou o olhar de sua face durante todo o tempo.

Agora, considere bem: o produto daquele pescador que volta pra casa tendo ouvido somente a segunda parte e o da mulher que conseguiu ouvir tudo é igual. Ambos voltaram para as suas casas e não pecaram mais, embora algumas vezes a mulher ainda escorregue. Aquele publicano também, tenho notícias de que ainda não está cem por cento. Mas, quando Jesus encontra-os na cidade, olha-os com misericórdia, como redimidos, e os chama para jantar como amigos. Com aqueles religiosos, que escolhem sempre bem, ele ainda continua brigando.

O perfume contido no frasco do Cristianismo daqueles que foram redimidos cheira mal, cheira morte. É o aroma do morto, do Cristo, o aroma agradável que gerou vida. O cheiro doce das boas escolhas que levam ao mérito não é o cheiro do Reino do crucificado. E enquanto aguardamos seu retorno, ficamos a cargo daquela que se manifestou salvadora a todos os homens, daquela presente na resposta sussurrada de Jesus, que se misturou ao barulho das ondas, a graça malcheirosa da cruz.

E a força da graça que nos manda ir e não pecar mais só existe porque antes o Mestre diz “eu também não te condeno”, mas sua preciosidade está em depois também termos ouvido dele “vá e não peques mais”. Ao por do sol, a mulher, o publicano, nós que ficamos na praia, os desmascarados, todos voltamos para casa e mudamos de vida, mas, diferentes daqueles pescadores, voltamos à sombra Daquele que carrega uma cruz e voltamos cheirando ao seu sangue.


 Por que para Deus somos o aroma de Cristo entre os que estão sendo salvos e os que estão perecendo. Para estes somos cheiro de morte; para aqueles, fragrância de vida.

Por um Cristianismo com mais cheiro de sangue.

terça-feira, 24 de abril de 2012

Bendito

Faço dessa minha canção para suportar os dias.

Por Adélia Prado
Louvados sejas Deus, meu Senhor,
porque o meu coração está cortado a lâmina,
mas sorrio no espelho ao que,
à revelia de tudo, se promete.
Porque sou desgraçado
como um homem tangido para a forca,
mas me lembro de uma noite na roça,
o luar nos legumes e um grilo,
minha sombra na parede.
Louvado sejas, porque eu quero pecar
contra o afinal sítio aprazível dos mortos,
violar as tumbas com o arranhão das unhas,
mas vejo Tua cabeça pendida
e escuto o galo cantar
três vezes em meu socorro.
Louvado sejas porque a vida é horrível,
porque mais é o tempo que eu passo recolhendo despojos,
– velho ao fim da guerra como uma cabra –
mas limpo os olhos e o muco do meu nariz,
por um canteiro de grama.
Louvados sejas porque eu quero morrer,
mas tenho medo e insisto em esperar o prometido.
Uma vez, quando eu era menino, abri a porta de noite,
a horta estava branca de luar
e acreditei sem nenhum sofrimento.
Louvado sejas!

sábado, 24 de dezembro de 2011

Soli Deo Gloria

Por Karina Lubascher Miragaia


A cultura, quando perde seu sentido sagrado, perde todo o sentido. Com o desaparecimento do sagrado, que colocava limites a todas as perfeições que poderiam ser alcançadas pelo profano, faz levantar uma das mais perigosas ilusões de nossa civilização – a ilusão de que não há limites para as mudanças pelas quais a vida humana pode passar. De que a sociedade, em princípio, é uma coisa indefinidamente flexível. - Kolakowsky


Mudaria o Natal ou mudei eu? – Machado de Assis


Por muito tempo achei arrogante a ideia da glória de Deus. Ela competia com a minha glória. Se você não se curvar, você não fica livre, poetizou ela. Os limites da perfeição me eram obscuros e essa era a minha prisão. Miserável homem que sou.


Descobri que a graça só nasce quando o profano é esmagado pelo sagrado. Toda vez que eu glorifico a Deus, deixo de glorificar a mim mesmo e isso é liberdade, liberdade das garras da perfeição que me sufocavam. A glória de Deus me libertou da minha e, isso, é graça. Olhar pra glória de Deus é reconhecer um ponto externo além de si, ponto que dá sentido aos olhos que se perderam no caminho do absurdo. Ah, não se engane, sentido só há quando os olhos têm mais de um ponto pra olhar.


O infinito de Deus na fragilidade de uma criança. Esse fato único ultrapassa todas as dimensões humanas. O sentido se fez carne. O único sentido se fez carne. A glória se fez carne. Se fez carne numa manjedoura. É o grande Deus encarnado no chão sujo da humanidade e foi essa glória humilde me quebrou. A humildade dele fez a minha. Longe do palácio, o sentido além de mim, o sentido que me ultrapassa se fez carne e está no caminho pra Belém.


Quando a conexão com a graça é cortada, fatalmente o homem cai numa prisão narcísica. A ordem de glorificá-lo é reconexão do absurdo do ponto único, a ordem de glorifica-lo é forçar o olhar perdido que olhava só pra si para o único ponto capaz de verdadeiramente dar olhos de carne e humanizar. Quem olha pra ele é livre. A ordem de glorifica-lo é graça.


Glorificar é trazer a presença. De que maneira eu O percebo em meus caminhos e de que maneira eu O projeto nos caminhos do próximo. De que maneira eu aponto o sentido há muito perdido.


Naquela manjedoura nasceu minha esperança. Nasceu a glória que me ofuscou os olhos e me feriu a alma. Naquela manjedoura, minha libertação. A glória que me curou a alma e me fez ver, me desglorificou. Fui eu, eu quem mudei, Machado. A glória do Cristo me humanizou. Não há nada além de graça no Deus que ordena glória, pois é nisso que ele oferece sentido. E o meu sentido está no caminho pra cruz. Soli Deo Gloria.


Glória a Deus nas alturas e paz na terra aos homens de boa vontade.

sábado, 20 de agosto de 2011

Sê propício a mim

Por Karina Lubascher Miragaia

“Mas o publicano, estando em pé, longe, não ousava nem ainda levantar os olhos aos céus, mas batia no peito, dizendo: ó Deus, sê propício a mim, pecador! Digo-vos que este desceu justificado para sua casa, e não aquele”.

A Religião começa olhando pra si. Sempre olhou e vai terminar sempre olhando pra si. Ó Deus, graças te dou que não sou como os demais homens, roubadores, injustos, adúlteros, nem ainda com este publicano. O “eu” é o parâmetro da Religião. A partir de si, ela olha pro outro. Olha pro outro e sente gratidão. Gratidão por que, sendo eles roubadores, injustos e adúlteros, ela é justa e honesta. A gratidão perante a miséria do outro me faz sentir digno, e por isso a justiça da Religião depende de colocar o diferente no inferno pra que se sinta céu. Depende de negar o próximo pra se afirmar. E assim ela enxerga o mundo, organiza-o entre os justos e injustos, entre os bons e os ruins. Assim, a Religião elitiza e dá o prazer da exclusão: graças te dou que não sou como os demais homens.

A partir de si, a Religião também olha pra Deus. A partir de si, ela move Deus. Porque eu faço, Ele faz; porque eu faço, Ele me ama; porque eu faço, Ele me declara justo. Jejuo duas vezes por semana e dou o dízimo de tudo quanto ganho. A Religião gaba-se de ir além da Lei porque seu prazer é o mover o sagrado como reflexo de suas obras. Consequentemente, se Deus está aqui comigo, Ele não está aí, contigo. E é olhando pra si que a engrenagem da Religião é movida: a maligna e medíocre engrenagem da divinização do homem. E, com uma aparência divina, a Religião mostrou-se fraca, pois não conseguiu se ver refletida no espelho. Ela confiou em seus olhos cegos. Olhando só pra si, a Religião fugiu de si e usurpou o posto de Deus.

Mas o publicano ficou à distância. Ele nem ousava olhar pro céu... A Redenção nunca olhou pra si. A alguns que confiavam em sua própria justiça e desprezavam os outros, Jesus contou esta parábola. A Redenção olhou primeiro pra cruz e, a partir da cruz, olhou então pro outro e olhou pra Deus. A partir da cruz, a Redenção foi a única que realmente olhou de volta pra si. Sem conseguir olhar pro alto, o publicano foi o único que olhou pra Deus, pois não precisou do outro para entender-se como pecador. O parâmetro agora é a cruz. Aquele que olha pra Cristo é aquele que se vê como pecador e aquele que se vê como pecador é aquele que se encontra com Deus. Quem discerniu o sagrado e esteve apto ao Reino foi aquele que conheceu sua própria miséria e entrou em contato com a sua verdade. O publicano olha pra cruz e se vê no espelho. Olha no espelho e confia em seus olhos, pois a cruz arrancou suas vendas. A Redenção não mais depende do outro no inferno, pois o reflexo da graça divina bastou pra levar o pecador ao céu. Ele não mais precisa confiar em sua própria justiça, pois reconhece que nele não há nenhuma. O sagrado não é mais movido pelo homem, mas foi movido de uma vez por todas pela cruz. E ela agora aproxima, pois a consciência da própria miséria não mais permite a demonização do outro. Somos iguais em desgraça, disse alguém uma vez. A comunhão verdadeira é aquela que se funda na consciência do pecado. E é olhando pra cruz que uma nova engrenagem é movida: a libertadora engrenagem da humanização. A verdadeira espiritualidade não depende mais de manter seres humanos divinos, mas agora produz seres humanos humanos. Ela não mais permite minha divinização. Deus agora habita onde há consciência do vício. O pecador é então o único suficientemente livre pra descobrir que a vida é feita de misericórdia. A misericórdia da cruz o libertou da necessidade constante de ser quem não é. A cruz me mostrou pecador e pecadores são livres porque sabem exatamente quem são.

Uma nova teologia foi então fundada, aquela do Deus encarnado que se instala no chão da humanidade e lava seus pés e, por isso, a teologia do discípulo que lava os pés do outro e permite que ele faça a si o mesmo, pois reconhece a sujeira de seus próprios pés. A mesma dor que nos esmaga nos redime. Nos redime da usurpação de ser como Deus. O mesmo pecado que nos afasta de Deus nos aproxima da Sua graça e nos liberta de uma espiritualidade distante da realidade existencial. A cruz me libertou de ser Deus. Seu posto foi devolvido. Olhando pra cruz, encontrei-me comigo e, batendo no peito, clamei meu grito de liberdade: ó Deus, sê propício a mim, pecador! Fui declarado justo.



Texto baseado: Pregação em 23-07-11 por Karina Lubascher Miragaia e Pregação em 09-07-11 por Elienai Cabral Jr, em http://www.ustream.tv/recorded/15898033


sexta-feira, 24 de junho de 2011

Fotografia

Por Karina Lubascher Miragaia

Talvez tudo seja uma questão de se enxergar a beleza. Enxergar um sentido, enxergar a verdade. Extrair poesia da vida, saber ouvir a música do silêncio. Apreender vida. Extrair vida da vida. Manuel Bandeira uma vez disse que poesia se faz com pequeninos nadas. Talvez vida se faça assim também, do meu nada. Captar a luz do momento, como fotografá-lo, e entendê-lo mais tarde como sentido. "Tirar uma foto é como reconhecer um evento. Naquele exato momento e numa fração de segundo, você organiza as formas que vê para expressar e dar sentido ao evento. É uma questão de pôr o cérebro, o olho e o coração na mesma linha de visão. É uma forma de viver", disse Henri Cartier-Bresson. Talvez fotografias ensinem mais de vida do que a vida. Organizar e dar sentido, é isso. E de uma explosão de palavras, saber fazer poesia. Explodir em palavras, sensação estranha essa. Estranho ter que contê-la em sintaxe, ter que organizar a explosão. Tirar poesia do silêncio. Bonita essa sensação, a do silêncio. Construir vida, não em silêncio, mas no silêncio. Há mais sentido no calar do que no tentar explicar. “Eu sempre achei que a melhor expressão de intimidade entre duas pessoas é o silêncio sem incômodo”, surgiu no meio de uma conversa com ela. Fez todo o sentido. Organizou a solidão e dela trouxe vida. Fez poesia. Momentos como esse, em que, sentada, eu olho pela janela, através do vidro, olho pra cidade, olho pras luzes, ouço as conversas, a televisão, a música (“New York, New York, I want to wake up in that city...”) e tenho vontade de fotografar minha explosão de sentimentos, são em momentos como esse que a vida aparece. Repito (a vida é feita de repetições), tento conter minha explosão em sintaxe, sem ter que revisar, sem ter que corrigir, só ter que apreciar. No fim, fotografar, escrever, viver, talvez tudo seja uma questão de se enxergar a beleza...  

sexta-feira, 13 de maio de 2011

Cruz

Por Karina Lubascher Miragaia

“E o Verbo se fez carne, e habitou entre nós, e vimos a sua glória, como a glória do unigênito do Pai, cheio de graça e de verdade...”.

O ponto que dialoga com o mundo, mas exatamente o ponto em que triunfa. Essa é a beleza. O sentido que se fez carne. Na cruz, se fez o meu sentido. Nela, o vislumbre do meu destino.
Nada me encanta mais. Nada me intriga mais. Na cruz, a identidade no paradoxo. Mais. Na cruz, a permissão do paradoxo. Do meu paradoxo.
“There’s freedom in the power of the cross”, diz a música. É a liberdade que traz consciência. Consciência da insuficiência, da fraqueza, da impossibilidade. E essa é a consciência que liberta.
Na cruz, a manifestação da graça. “Your grace has overwhelmed my brokenness”. A contemplação da graça que trouxe a lágrima e, na lágrima, tudo.
Na cruz, vejo Cristo. Nele, o meu sentido, o meu destino. Na cruz, eu vejo Deus. É o Deus que se fez carne, o Deus que habitou com os imperfeitos. O Deus que morre e, na cruz, liberta.
O desejo de grandeza se esvai, nela. Marcou minha sorte, curou meu coração. A cruz salvou minha alma e isso bastou.
Não me deu explicações, mas me encantou com sua verdade. Verdade é o que ela é. Não a minha, mas a cruz é a verdade que me alcança, me atropela. E ela abriu meus olhos. Me peguei em flagrante. Sondou-me e deixou-me ser eu. Mudou-me. Isso é a verdade. O que me toca é a sua verdade.
"Odeia-se quem não se deixou amar com máscara". A cruz tirou as minhas. Nela, incidi em mim mesmo. Quero então o ódio.
O sangue que na cruz escorreu compadeceu-se da dor que sangrou no meu peito. Aproximou-se. Essa é a identidade. Identidade na ambiguidade, a identidade que não explica. E isso me confortou.
Seu triunfo está na liberdade da consciência. Essa é a esperança. Essa é a glória.
Na cruz, a luta. Minha luta com Deus, minha luta comigo. Saio ferida. Perdendo, venci.
Vencestes sobre o meu mal. Mostrou-o a mim. A cruz salvou-me de mim. Ela me mostrou quem sou e me permitiu ser. Há conforto no paradoxo.
Na cruz, por fim, a aceitação do meu destino: Deus, o meu destino é Deus. O meu destino se fez carne. O meu destino é o Deus da cruz.

“Everything I am for Your Kingdom’s cause as I walk from Earth into Eternity”.