sábado, 20 de agosto de 2011

Sê propício a mim

Por Karina Lubascher Miragaia

“Mas o publicano, estando em pé, longe, não ousava nem ainda levantar os olhos aos céus, mas batia no peito, dizendo: ó Deus, sê propício a mim, pecador! Digo-vos que este desceu justificado para sua casa, e não aquele”.

A Religião começa olhando pra si. Sempre olhou e vai terminar sempre olhando pra si. Ó Deus, graças te dou que não sou como os demais homens, roubadores, injustos, adúlteros, nem ainda com este publicano. O “eu” é o parâmetro da Religião. A partir de si, ela olha pro outro. Olha pro outro e sente gratidão. Gratidão por que, sendo eles roubadores, injustos e adúlteros, ela é justa e honesta. A gratidão perante a miséria do outro me faz sentir digno, e por isso a justiça da Religião depende de colocar o diferente no inferno pra que se sinta céu. Depende de negar o próximo pra se afirmar. E assim ela enxerga o mundo, organiza-o entre os justos e injustos, entre os bons e os ruins. Assim, a Religião elitiza e dá o prazer da exclusão: graças te dou que não sou como os demais homens.

A partir de si, a Religião também olha pra Deus. A partir de si, ela move Deus. Porque eu faço, Ele faz; porque eu faço, Ele me ama; porque eu faço, Ele me declara justo. Jejuo duas vezes por semana e dou o dízimo de tudo quanto ganho. A Religião gaba-se de ir além da Lei porque seu prazer é o mover o sagrado como reflexo de suas obras. Consequentemente, se Deus está aqui comigo, Ele não está aí, contigo. E é olhando pra si que a engrenagem da Religião é movida: a maligna e medíocre engrenagem da divinização do homem. E, com uma aparência divina, a Religião mostrou-se fraca, pois não conseguiu se ver refletida no espelho. Ela confiou em seus olhos cegos. Olhando só pra si, a Religião fugiu de si e usurpou o posto de Deus.

Mas o publicano ficou à distância. Ele nem ousava olhar pro céu... A Redenção nunca olhou pra si. A alguns que confiavam em sua própria justiça e desprezavam os outros, Jesus contou esta parábola. A Redenção olhou primeiro pra cruz e, a partir da cruz, olhou então pro outro e olhou pra Deus. A partir da cruz, a Redenção foi a única que realmente olhou de volta pra si. Sem conseguir olhar pro alto, o publicano foi o único que olhou pra Deus, pois não precisou do outro para entender-se como pecador. O parâmetro agora é a cruz. Aquele que olha pra Cristo é aquele que se vê como pecador e aquele que se vê como pecador é aquele que se encontra com Deus. Quem discerniu o sagrado e esteve apto ao Reino foi aquele que conheceu sua própria miséria e entrou em contato com a sua verdade. O publicano olha pra cruz e se vê no espelho. Olha no espelho e confia em seus olhos, pois a cruz arrancou suas vendas. A Redenção não mais depende do outro no inferno, pois o reflexo da graça divina bastou pra levar o pecador ao céu. Ele não mais precisa confiar em sua própria justiça, pois reconhece que nele não há nenhuma. O sagrado não é mais movido pelo homem, mas foi movido de uma vez por todas pela cruz. E ela agora aproxima, pois a consciência da própria miséria não mais permite a demonização do outro. Somos iguais em desgraça, disse alguém uma vez. A comunhão verdadeira é aquela que se funda na consciência do pecado. E é olhando pra cruz que uma nova engrenagem é movida: a libertadora engrenagem da humanização. A verdadeira espiritualidade não depende mais de manter seres humanos divinos, mas agora produz seres humanos humanos. Ela não mais permite minha divinização. Deus agora habita onde há consciência do vício. O pecador é então o único suficientemente livre pra descobrir que a vida é feita de misericórdia. A misericórdia da cruz o libertou da necessidade constante de ser quem não é. A cruz me mostrou pecador e pecadores são livres porque sabem exatamente quem são.

Uma nova teologia foi então fundada, aquela do Deus encarnado que se instala no chão da humanidade e lava seus pés e, por isso, a teologia do discípulo que lava os pés do outro e permite que ele faça a si o mesmo, pois reconhece a sujeira de seus próprios pés. A mesma dor que nos esmaga nos redime. Nos redime da usurpação de ser como Deus. O mesmo pecado que nos afasta de Deus nos aproxima da Sua graça e nos liberta de uma espiritualidade distante da realidade existencial. A cruz me libertou de ser Deus. Seu posto foi devolvido. Olhando pra cruz, encontrei-me comigo e, batendo no peito, clamei meu grito de liberdade: ó Deus, sê propício a mim, pecador! Fui declarado justo.



Texto baseado: Pregação em 23-07-11 por Karina Lubascher Miragaia e Pregação em 09-07-11 por Elienai Cabral Jr, em http://www.ustream.tv/recorded/15898033


Um comentário:

Unknown disse...

Lindo desabafo Ka, que Deus nos ajude a chegar a um padrão existencial que ainda não chegou a compreensão humana!

Beijo de carinho...