segunda-feira, 28 de maio de 2012

Eu não escolhi nada

Por Karina Lubascher Miragaia

[...] e não vendo a ninguém senão a mulher, perguntou-lhe: mulher, onde estão os teus acusadores? Ninguém te condenou? Respondeu ela: ninguém, Senhor. E disse-lhe Jesus: nem eu te condeno; agora vai e não peques mais.

“Sabe aquelas vezes em que você decide que vai começar a separar um tempo para ler a Bíblia todos os dias, certinho, e parece que o inferno baixa? Dá preguiça, sono, aparecem vários compromissos... Então, meu filho, não é o inferno que baixa, é Deus mesmo, te mostrando que, quando você decide fazer algo por ele, por suas forças, você não vai conseguir”, foi o que eu ouvi certa vez em um culto. Em um Cristianismo onde escolhas tornaram-se sinônimo de santidade, é exatamente isso que nos falta ouvir.

Certa vez, uma mulher flagrada em adultério foi levada à presença de Jesus pelos religiosos da época. “Foi pega em flagrante, a Lei diz que tem que ser apedrejada!”, foi o que eles disseram então. “Tem que ficar de banco!”. Já ouviu, né? Jesus senta na areia e começa a desenhar no chão com as mãos. Aí, então, ouvimos o que talvez foi uma das respostas mais geniais já antes dadas: sendo assim, fiquem vocês todos de banco! “Quem nunca pecou, atire a primeira pedra”. Acho que podemos sentar aqui mesmo com Jesus e ficar o resto da vida desenhando com ele na areia, pensando.

Depois de um tempo, sem reação, todos vão embora e os gritos param, o burburinho passa, os curiosos voltam para suas casas, os religiosos voltam para os seus métodos e ficam na praia somente Jesus, a mulher, o barulho das ondas, os pescadores no mar ao fundo e, hoje, eu e você.
­—  Onde estão teus condenadores? - disse ele.
  Não há mais ninguém aqui, mestre.
  Ninguém te condenou?
  Não.
E esta foi então a resposta mais genial que já ouvimos:
  Eu também não te condeno. Agora vá e não peques mais.

Entretanto, lá atrás, os pescadores, longe nos barcos, não puderam ouvir muito bem a resposta de Jesus. Alguns deles conseguiram discernir somente a primeira parte. Esses então voltaram para casa felizes e continuaram sua vida de pecado. “Jesus não me condena”. Esses são os que tomam a graça por barata. Não conseguiram sentir o peso da cruz, não chegaram perto do Mestre o suficiente pra ver o suor na sua face, não sentiram o cheiro do sangue escorrendo.

O restante deles, ao contrário, pôde ouvir somente a segunda parte: “vá e não peques mais”. Voltaram para casa sombrios e até hoje tentamos conter o estrago que fizeram. São esses os que sentiram o peso da cruz e a julgaram leve demais. Os que esfregam o chão até que nenhuma marca de sangue seja mais vista e seu cheiro não seja mais sentido. São esses o que precisam ouvir o que eu ouvi naquele culto. Os grandes mascarados do Reino, os que não erram, simplesmente pelo fato de terem escolhido não mais errar. Santidade confundida com fazer escolhas certas. Não se engane: mais tarde, essas escolhas acabarão por substituir o peso da cruz. A escolha pelo certo que dá a sensação de mérito, a escolha pelo martírio que dá a sensação de redenção. Sensação de peso. São os nobres demais para deixar Jesus carregar a cruz sozinho, são os limpos demais para deixar que a vida cheire a sangue.

Mas aquela mulher estava perto o suficiente para ouvir a resposta inteira de Jesus. E ficou sentada na areia até o sol se por, olhando pro mar, e então compreendeu. Depois do pecado, depois da condenação, depois do choro, depois da dor, depois do silêncio, os que ficam suficientemente perto do Mestre então também ouvem: “a justificação vem para aqueles choram por vergonha de olhar nos meus olhos”. A santidade é medida pela capacidade ao arrependimento. As mãos calejadas pelo pecado e o coração que sente saudade do Deus distante não têm força para carregar a cruz junto com Cristo.

Tempos mais tarde, outra pessoa também entendeu isso: um publicano, pecador e traidor, estava no templo junto com um religioso. Um daqueles que estavam aquele dia na praia e que acabou por ouvir dizer a resposta de Jesus à mulher, mas pela boca dos pescadores que ouviram somente a segunda parte. No templo, os dois oravam. O religioso, com gratidão, gratidão por ter escolhido certo, por ter escolhido não estar junto com aqueles pecadores lá do mundo, por ter escolhido estar aqui, são e salvo, na igreja, sentindo o peso do mérito. O publicano, esse não olhava pro céu. Sentou lá no fundo e não levantou as mãos na hora do louvor. Não cantou, mas bateu no peito e sentiu vergonha. “Tem misericórdia de mim, que sou pecador”, ouvi como num sussurro. Terminou o culto, fomos todos embora, mas somente um, disse Jesus, pisou em casa redimido: aquele que desviou o olhar de sua face durante todo o tempo.

Agora, considere bem: o produto daquele pescador que volta pra casa tendo ouvido somente a segunda parte e o da mulher que conseguiu ouvir tudo é igual. Ambos voltaram para as suas casas e não pecaram mais, embora algumas vezes a mulher ainda escorregue. Aquele publicano também, tenho notícias de que ainda não está cem por cento. Mas, quando Jesus encontra-os na cidade, olha-os com misericórdia, como redimidos, e os chama para jantar como amigos. Com aqueles religiosos, que escolhem sempre bem, ele ainda continua brigando.

O perfume contido no frasco do Cristianismo daqueles que foram redimidos cheira mal, cheira morte. É o aroma do morto, do Cristo, o aroma agradável que gerou vida. O cheiro doce das boas escolhas que levam ao mérito não é o cheiro do Reino do crucificado. E enquanto aguardamos seu retorno, ficamos a cargo daquela que se manifestou salvadora a todos os homens, daquela presente na resposta sussurrada de Jesus, que se misturou ao barulho das ondas, a graça malcheirosa da cruz.

E a força da graça que nos manda ir e não pecar mais só existe porque antes o Mestre diz “eu também não te condeno”, mas sua preciosidade está em depois também termos ouvido dele “vá e não peques mais”. Ao por do sol, a mulher, o publicano, nós que ficamos na praia, os desmascarados, todos voltamos para casa e mudamos de vida, mas, diferentes daqueles pescadores, voltamos à sombra Daquele que carrega uma cruz e voltamos cheirando ao seu sangue.


 Por que para Deus somos o aroma de Cristo entre os que estão sendo salvos e os que estão perecendo. Para estes somos cheiro de morte; para aqueles, fragrância de vida.

Por um Cristianismo com mais cheiro de sangue.