sábado, 24 de dezembro de 2011

Soli Deo Gloria

Por Karina Lubascher Miragaia


A cultura, quando perde seu sentido sagrado, perde todo o sentido. Com o desaparecimento do sagrado, que colocava limites a todas as perfeições que poderiam ser alcançadas pelo profano, faz levantar uma das mais perigosas ilusões de nossa civilização – a ilusão de que não há limites para as mudanças pelas quais a vida humana pode passar. De que a sociedade, em princípio, é uma coisa indefinidamente flexível. - Kolakowsky


Mudaria o Natal ou mudei eu? – Machado de Assis


Por muito tempo achei arrogante a ideia da glória de Deus. Ela competia com a minha glória. Se você não se curvar, você não fica livre, poetizou ela. Os limites da perfeição me eram obscuros e essa era a minha prisão. Miserável homem que sou.


Descobri que a graça só nasce quando o profano é esmagado pelo sagrado. Toda vez que eu glorifico a Deus, deixo de glorificar a mim mesmo e isso é liberdade, liberdade das garras da perfeição que me sufocavam. A glória de Deus me libertou da minha e, isso, é graça. Olhar pra glória de Deus é reconhecer um ponto externo além de si, ponto que dá sentido aos olhos que se perderam no caminho do absurdo. Ah, não se engane, sentido só há quando os olhos têm mais de um ponto pra olhar.


O infinito de Deus na fragilidade de uma criança. Esse fato único ultrapassa todas as dimensões humanas. O sentido se fez carne. O único sentido se fez carne. A glória se fez carne. Se fez carne numa manjedoura. É o grande Deus encarnado no chão sujo da humanidade e foi essa glória humilde me quebrou. A humildade dele fez a minha. Longe do palácio, o sentido além de mim, o sentido que me ultrapassa se fez carne e está no caminho pra Belém.


Quando a conexão com a graça é cortada, fatalmente o homem cai numa prisão narcísica. A ordem de glorificá-lo é reconexão do absurdo do ponto único, a ordem de glorifica-lo é forçar o olhar perdido que olhava só pra si para o único ponto capaz de verdadeiramente dar olhos de carne e humanizar. Quem olha pra ele é livre. A ordem de glorifica-lo é graça.


Glorificar é trazer a presença. De que maneira eu O percebo em meus caminhos e de que maneira eu O projeto nos caminhos do próximo. De que maneira eu aponto o sentido há muito perdido.


Naquela manjedoura nasceu minha esperança. Nasceu a glória que me ofuscou os olhos e me feriu a alma. Naquela manjedoura, minha libertação. A glória que me curou a alma e me fez ver, me desglorificou. Fui eu, eu quem mudei, Machado. A glória do Cristo me humanizou. Não há nada além de graça no Deus que ordena glória, pois é nisso que ele oferece sentido. E o meu sentido está no caminho pra cruz. Soli Deo Gloria.


Glória a Deus nas alturas e paz na terra aos homens de boa vontade.

sábado, 20 de agosto de 2011

Sê propício a mim

Por Karina Lubascher Miragaia

“Mas o publicano, estando em pé, longe, não ousava nem ainda levantar os olhos aos céus, mas batia no peito, dizendo: ó Deus, sê propício a mim, pecador! Digo-vos que este desceu justificado para sua casa, e não aquele”.

A Religião começa olhando pra si. Sempre olhou e vai terminar sempre olhando pra si. Ó Deus, graças te dou que não sou como os demais homens, roubadores, injustos, adúlteros, nem ainda com este publicano. O “eu” é o parâmetro da Religião. A partir de si, ela olha pro outro. Olha pro outro e sente gratidão. Gratidão por que, sendo eles roubadores, injustos e adúlteros, ela é justa e honesta. A gratidão perante a miséria do outro me faz sentir digno, e por isso a justiça da Religião depende de colocar o diferente no inferno pra que se sinta céu. Depende de negar o próximo pra se afirmar. E assim ela enxerga o mundo, organiza-o entre os justos e injustos, entre os bons e os ruins. Assim, a Religião elitiza e dá o prazer da exclusão: graças te dou que não sou como os demais homens.

A partir de si, a Religião também olha pra Deus. A partir de si, ela move Deus. Porque eu faço, Ele faz; porque eu faço, Ele me ama; porque eu faço, Ele me declara justo. Jejuo duas vezes por semana e dou o dízimo de tudo quanto ganho. A Religião gaba-se de ir além da Lei porque seu prazer é o mover o sagrado como reflexo de suas obras. Consequentemente, se Deus está aqui comigo, Ele não está aí, contigo. E é olhando pra si que a engrenagem da Religião é movida: a maligna e medíocre engrenagem da divinização do homem. E, com uma aparência divina, a Religião mostrou-se fraca, pois não conseguiu se ver refletida no espelho. Ela confiou em seus olhos cegos. Olhando só pra si, a Religião fugiu de si e usurpou o posto de Deus.

Mas o publicano ficou à distância. Ele nem ousava olhar pro céu... A Redenção nunca olhou pra si. A alguns que confiavam em sua própria justiça e desprezavam os outros, Jesus contou esta parábola. A Redenção olhou primeiro pra cruz e, a partir da cruz, olhou então pro outro e olhou pra Deus. A partir da cruz, a Redenção foi a única que realmente olhou de volta pra si. Sem conseguir olhar pro alto, o publicano foi o único que olhou pra Deus, pois não precisou do outro para entender-se como pecador. O parâmetro agora é a cruz. Aquele que olha pra Cristo é aquele que se vê como pecador e aquele que se vê como pecador é aquele que se encontra com Deus. Quem discerniu o sagrado e esteve apto ao Reino foi aquele que conheceu sua própria miséria e entrou em contato com a sua verdade. O publicano olha pra cruz e se vê no espelho. Olha no espelho e confia em seus olhos, pois a cruz arrancou suas vendas. A Redenção não mais depende do outro no inferno, pois o reflexo da graça divina bastou pra levar o pecador ao céu. Ele não mais precisa confiar em sua própria justiça, pois reconhece que nele não há nenhuma. O sagrado não é mais movido pelo homem, mas foi movido de uma vez por todas pela cruz. E ela agora aproxima, pois a consciência da própria miséria não mais permite a demonização do outro. Somos iguais em desgraça, disse alguém uma vez. A comunhão verdadeira é aquela que se funda na consciência do pecado. E é olhando pra cruz que uma nova engrenagem é movida: a libertadora engrenagem da humanização. A verdadeira espiritualidade não depende mais de manter seres humanos divinos, mas agora produz seres humanos humanos. Ela não mais permite minha divinização. Deus agora habita onde há consciência do vício. O pecador é então o único suficientemente livre pra descobrir que a vida é feita de misericórdia. A misericórdia da cruz o libertou da necessidade constante de ser quem não é. A cruz me mostrou pecador e pecadores são livres porque sabem exatamente quem são.

Uma nova teologia foi então fundada, aquela do Deus encarnado que se instala no chão da humanidade e lava seus pés e, por isso, a teologia do discípulo que lava os pés do outro e permite que ele faça a si o mesmo, pois reconhece a sujeira de seus próprios pés. A mesma dor que nos esmaga nos redime. Nos redime da usurpação de ser como Deus. O mesmo pecado que nos afasta de Deus nos aproxima da Sua graça e nos liberta de uma espiritualidade distante da realidade existencial. A cruz me libertou de ser Deus. Seu posto foi devolvido. Olhando pra cruz, encontrei-me comigo e, batendo no peito, clamei meu grito de liberdade: ó Deus, sê propício a mim, pecador! Fui declarado justo.



Texto baseado: Pregação em 23-07-11 por Karina Lubascher Miragaia e Pregação em 09-07-11 por Elienai Cabral Jr, em http://www.ustream.tv/recorded/15898033


sexta-feira, 24 de junho de 2011

Fotografia

Por Karina Lubascher Miragaia

Talvez tudo seja uma questão de se enxergar a beleza. Enxergar um sentido, enxergar a verdade. Extrair poesia da vida, saber ouvir a música do silêncio. Apreender vida. Extrair vida da vida. Manuel Bandeira uma vez disse que poesia se faz com pequeninos nadas. Talvez vida se faça assim também, do meu nada. Captar a luz do momento, como fotografá-lo, e entendê-lo mais tarde como sentido. "Tirar uma foto é como reconhecer um evento. Naquele exato momento e numa fração de segundo, você organiza as formas que vê para expressar e dar sentido ao evento. É uma questão de pôr o cérebro, o olho e o coração na mesma linha de visão. É uma forma de viver", disse Henri Cartier-Bresson. Talvez fotografias ensinem mais de vida do que a vida. Organizar e dar sentido, é isso. E de uma explosão de palavras, saber fazer poesia. Explodir em palavras, sensação estranha essa. Estranho ter que contê-la em sintaxe, ter que organizar a explosão. Tirar poesia do silêncio. Bonita essa sensação, a do silêncio. Construir vida, não em silêncio, mas no silêncio. Há mais sentido no calar do que no tentar explicar. “Eu sempre achei que a melhor expressão de intimidade entre duas pessoas é o silêncio sem incômodo”, surgiu no meio de uma conversa com ela. Fez todo o sentido. Organizou a solidão e dela trouxe vida. Fez poesia. Momentos como esse, em que, sentada, eu olho pela janela, através do vidro, olho pra cidade, olho pras luzes, ouço as conversas, a televisão, a música (“New York, New York, I want to wake up in that city...”) e tenho vontade de fotografar minha explosão de sentimentos, são em momentos como esse que a vida aparece. Repito (a vida é feita de repetições), tento conter minha explosão em sintaxe, sem ter que revisar, sem ter que corrigir, só ter que apreciar. No fim, fotografar, escrever, viver, talvez tudo seja uma questão de se enxergar a beleza...  

sexta-feira, 13 de maio de 2011

Cruz

Por Karina Lubascher Miragaia

“E o Verbo se fez carne, e habitou entre nós, e vimos a sua glória, como a glória do unigênito do Pai, cheio de graça e de verdade...”.

O ponto que dialoga com o mundo, mas exatamente o ponto em que triunfa. Essa é a beleza. O sentido que se fez carne. Na cruz, se fez o meu sentido. Nela, o vislumbre do meu destino.
Nada me encanta mais. Nada me intriga mais. Na cruz, a identidade no paradoxo. Mais. Na cruz, a permissão do paradoxo. Do meu paradoxo.
“There’s freedom in the power of the cross”, diz a música. É a liberdade que traz consciência. Consciência da insuficiência, da fraqueza, da impossibilidade. E essa é a consciência que liberta.
Na cruz, a manifestação da graça. “Your grace has overwhelmed my brokenness”. A contemplação da graça que trouxe a lágrima e, na lágrima, tudo.
Na cruz, vejo Cristo. Nele, o meu sentido, o meu destino. Na cruz, eu vejo Deus. É o Deus que se fez carne, o Deus que habitou com os imperfeitos. O Deus que morre e, na cruz, liberta.
O desejo de grandeza se esvai, nela. Marcou minha sorte, curou meu coração. A cruz salvou minha alma e isso bastou.
Não me deu explicações, mas me encantou com sua verdade. Verdade é o que ela é. Não a minha, mas a cruz é a verdade que me alcança, me atropela. E ela abriu meus olhos. Me peguei em flagrante. Sondou-me e deixou-me ser eu. Mudou-me. Isso é a verdade. O que me toca é a sua verdade.
"Odeia-se quem não se deixou amar com máscara". A cruz tirou as minhas. Nela, incidi em mim mesmo. Quero então o ódio.
O sangue que na cruz escorreu compadeceu-se da dor que sangrou no meu peito. Aproximou-se. Essa é a identidade. Identidade na ambiguidade, a identidade que não explica. E isso me confortou.
Seu triunfo está na liberdade da consciência. Essa é a esperança. Essa é a glória.
Na cruz, a luta. Minha luta com Deus, minha luta comigo. Saio ferida. Perdendo, venci.
Vencestes sobre o meu mal. Mostrou-o a mim. A cruz salvou-me de mim. Ela me mostrou quem sou e me permitiu ser. Há conforto no paradoxo.
Na cruz, por fim, a aceitação do meu destino: Deus, o meu destino é Deus. O meu destino se fez carne. O meu destino é o Deus da cruz.

“Everything I am for Your Kingdom’s cause as I walk from Earth into Eternity”.

segunda-feira, 11 de abril de 2011

Onze de Abril

Porque me atravessou forte, me fez calar, sentir, chorar. Te amo, sem fim.

por Bárbara Dias Rigotti

Ontem eu a vi. Estava bonita. Unhas azuis, cabelo bem preto preso no alto, com um prendedor laranja, quase que num coque, calça e brinco da cor do esmalte, blusa cinza, all star branco. Vive reclamando de peso, vive reclamando. Mas nela eu vejo toda beleza. Não queria pegar chuva, colocou a blusa por cima da cabeça. “Meu cabelo vai armar”. Ah, ela é linda. Linda e inteligente. Penso que é injusto, mas não invejo. Muita qualidade. Tem defeitos, sim. Ela reclama e é palmeirense. Eu engulo.

Hoje ela faz vinte e um, ela! Ela que faz as coisas ficarem mais bonitas. Ela que diminui a tristeza e que faz imensa a felicidade. Ela que me irrita de vez em quando. Ela que eu sinto saudades quando passa mais de um dia longe. Ela me ensina. Ela ri de mim. Ela ri comigo.

Ela gosta de luxo, de casas bonitas, roupas caras, bairros nobres. Não faz questão, mas gosta. E que bom gosto. Que bom gosto. Música boa, boa leitura. Escreve como ninguém. Tem questões bem dela. E ela enxerga. Tão singular. Não, não é das mais falantes. Fala o necessário. Não gosta de gastar palavras em vão. Fala o necessário. Ela também não abraça muito. Ela ama muito, mas não abraça muito. Deixa.

A gente vive comentando dessa coisa de liberdade nos relacionamentos, essa coisa de deixar o outro seguir o caminho que quer. E eu acho certo. Deve ir pronde quiser. Mas, no fundo, eu tenho medo dela sumir. Não a quero longe, não. Tenho até ciúmes de qualquer pessoa suspeita a tomar meu lugar. Não, não, nem pensar.

“Ninguém tem o direito de te fazer sentir mal pelo que sentes.” Frase dela, do avô dela. É mais ou menos isso. Nela eu confio. Eu conto tudo, sem caô. Não preciso de rodeios. E quando eu me sinto vil e desprezível, ela me olha com amor, e me entende. Não dá pra entender, mas ela entende. E eu me sinto bem.

Hoje eu queria fazer algo especial com ela, algo como deitar na grama e olhar pro céu. Olhar pro céu é tão especial. Mas ela não deitaria na grama assim, tão fácil, tem bichinhos. Algo como fazer um brigadeiro bem gostoso e assistir um filme bom. Mas já fazemos isso com alguma freqüência. Algo como tomar um milk shake enorme de avelã. Ela adoraria, mas depois reclamaria que vai engordar (e eu só penso em comida). Algo como estar ao lado dela e respirar. É, é isso, estar com ela. Especial demais. “Eu tenho mesmo muita sorte”, me escapa alto um pensamento.

É estranho, eu não consigo descrever o que eu sinto por ela. É muito. E não dá pra falar sobre. Sinto que escrito diminui. Talvez porque eu não saiba escrever mesmo. Talvez porque ainda não inventaram esse sentimento. Tá feio, né?! Será que ela vai gostar? Nossa, tá muito feio. Logo ela que escreve tão bem, ela que fala pouco e diz tudo. Eu muito falo e nada digo, sou mesmo muito atrapalhada. Ela não merece isso, coitada. Tá torto, não faz sentido, não tem ligação de nada com nada, nem cheira bem. Credo.

Karina, eu te amo, desculpa, eu não soube dizer. Parece que amor é forte. Dizem que é. Se for mesmo, eu te amo. Por que o que eu sinto é bem forte. Arde e é do bom. Hoje você faz vinte e um. Grande coisa. Você é incrível, você me faz bem, você tem super poderes, você me atravessou. Parabéns. 


(Em http://babirigotti.blogspot.com/)

domingo, 10 de abril de 2011

A Verdadeira Obra do Espírito

Por Karina Lubascher Miragaia
 Junho/2010, ensaio para aula de Teologia Sistemática   

Ensaio com base nas leituras de A Verdadeira Obra do Espírito – Sinais de Autenticidade, de Jonathan Edwards e Na Dinâmica do Espírito – Uma Avaliação das Práticas e Doutrinas, de J. I. Packer

Quando se pensa no Espírito Santo e em sua obra na vida dos cristãos, frequentemente pensa-se em um ministério focalizado no indivíduo que crê, nas suas necessidades e na sua experiência emocional e sobrenatural. Os dons extraordinários, muito mais do que acompanhantes da obra, são evidências do nível de espiritualidade do cristão.
Ora, apesar dos aspectos positivos que essa perspectiva do movimento carismático trouxe a Igreja, é necessário que sejam considerados seus aspectos negativos e a deficiência que eles têm produzido na saúde espiritual do cristão como indivíduo e como comunidade. Deficiência, pois a centralização nas necessidades e experiências pessoais padronizadas tem tido um fim em si mesmo e distorcido a imagem e o conhecimento do cristão acerca de si e acerca do outro, abrindo assim caminho para a presunção e julgamento incorreto da verdadeira obra do Espírito Santo. Para tentarmos mudar essa visão, ou pelo menos começarmos a, é necessário resgatar justamente a idéia de qual seja essa verdadeira obra do Espírito, pregada há muito por Cristo, e de como ela atua na vida da Igreja através da graça comum. Portanto, é necessário resgatar o ministério do Espírito que é centralizado em Cristo e a superioridade da graça comum sobre as manifestações sobrenaturais.
À pessoa do Espírito Santo e à sua obra tem sido dada muita relevância no meio evangélico hoje. Não é preciso procurar muito por evidências do movimento carismático, pois a nossa própria vivência em nossas comunidades locais já nos insere nessa realidade. Como característica desse movimento, temos um derramar do Espírito Santo comprovado por uma experiência padrão: a busca por dons sobrenaturais, como os de cura, de línguas, profecias, além de grandes manifestações sobrenaturais com impulsos e impressões na mente que revelam os mistérios de Deus e a Sua Palavra e dão direcionamentos específicos. Manifestações físicas e fortemente emocionais são a exteriorização do derramar do Espírito e, quanto maiores, significam que maior abertura deu o indivíduo ao mover de Deus. Olhando para um período de culto, o foco não é a reflexão teológica da Palavra, mas momentos que levem às experiências padrões, pois elas são o indicativo de um dirigir do Espírito. Juntamente com a experiência padrão, vem também uma expectativa padrão: espera-se que o Espírito Santo esteja sempre interessado em aliviar os meus incômodos, em suprir as minhas necessidades e, de vez em quando, os meus caprichos, em me dar livramento de tribulações de certa gravidade, em me conduzir a uma adoração livre, espontânea e emocional e em me mostrar um Cristo que é a resposta dos meus questionamentos pessoais. Consequentemente, é esse o Cristo e o Cristianismo que eu prego: uma experiência subjetiva e ansiolítica em sua essência.
Não podemos descartar os aspectos positivos que o movimento carismático trouxe a Igreja. J. I. Packer, em sua obra Na dinâmica do Espírito Santo – uma avaliação das práticas e doutrinas, de maneira geral, lista 12 deles: a centralização de Cristo, a vida no poder do Espírito, a emoção que encontra expressão, a oração, a alegria, o envolvimento de todos os corações na adoração a Deus, o ministério de todos os membros no corpo de Cristo, o zelo missionário, o ministério de pequenos grupos, a atitude diante das estruturas eclesiásticas, a vida comunitária e a contribuição generosa [1]. O resgate dos dons espirituais, uma adoração mais livre e uma percepção mais pessoal de Deus realmente são características válidas na vida da Igreja, assim como a busca por uma dependência maior do Espírito Santo. Quando tudo isso traz uma vivificação na vida espiritual da comunidade cristã, de modo que a faça buscar mais a face de Deus, podemos perceber a atuação do Espírito. Mesmo quando algumas atitudes vêm acompanhadas de certos exageros emocionais, não se pode desconsiderar uma influência do Espírito verdadeiro, pois quase nunca o ser humano não é levado a distorções, ainda mais quando o assunto é de natureza sobrenatural.
Entretanto, junto com as características positivas, podem ser detectados também alguns aspectos negativos quando olhamos para nossa vivência cotidiana e contemporânea da vida espiritual da Igreja. Pensando nos dons e manifestações sobrenaturais característicos desse movimento, Packer também lista 10 aspectos negativos da experiência carismática: elitismo, quando as experiências sobrenaturais dão a sensação de haver uma “aristocracia espiritual” na comunidade; sectarismo, quando a comunidade limita a envolver-se, dentro da igreja e secularmente, somente com outros que pensem a ajam da mesma forma que ela; emocionalismo, quando a manipulação emocional supera uma emoção sadia; anti-intelectualismo, quando a experiência sobrenatural carece e coloca em segundo plano o estudo reflexivo da Palavra, o que muitas vezes causa infantilidade na exposição bíblica; iluminismo, quando os impulsos da mente e revelações por profecias deixam seus ouvintes vulneráveis, manipuláveis e sem senso crítico com base na Palavra; carismania, quando o critério para se medir a espiritualidade do cristão é dado pelo sensacionalismo dos dons e suas manifestações públicas; super-sobrenaturalismo, quando desconsidera-se e até desaponta-se com qualquer obra de Deus que não seja sobrenatural; eudemonismo, quando o “sentir-se bem” e a euforia são sempre o fim da obra do Espírito; obsessão por demônios, quando todos os problemas e pecados são ligados à ação de Satanás; e, finalmente, conformismo, quando a comunidade novamente se escraviza a experiências que supostamente confirmam a ação do Espírito [2].
Embora, como dito acima, nenhum tipo de experiência cristã esteja livre de fraquezas e exageros e, muito menos, nenhuma experiência cristã é somente válida quando não-carismática, é facilmente perceptível que os aspectos negativos do movimento carismático mantêm a igreja num grande nível de imaturidade em seu pensar e agir. E, quando a imaturidade se estende por um longo período de tempo, o crescimento saudável da igreja fica comprometido. Frequentemente, a experiência subjetiva do ministério do Espírito Santo vem  mascarada de uma grande valorização da terceira pessoa da Trindade, mas que, entretanto, valoriza mais o cristão que o próprio Espírito. Assim, vê-se que a busca pelo Espírito e suas dádivas, ao invés de buscar a glorificação de Cristo, torna-se um meio para o suprimento de necessidades e para o alcance de desejos e objetivos pessoais. Quando esse alcance é o fim de todo o mover espiritual, não há mais um fim em Cristo, mas um fim em si mesmo. E quando Cristo não é mais o fim de todas as coisas, raramente pode-se ter um Cristo que é Senhor.
Uma visão mais equilibrada e centrada em Cristo, portanto, da verdadeira obra do Espírito Santo é o que Packer chama de “ministério do holofote” [3]. Ora, quando a iluminação e a focalização de um edifício são bem feitas, sabe-se que os holofotes estão colocados de forma estratégica a fim de que não sejam vistos enquanto permitem que o edifício seja visto de forma adequada e em sua totalidade. Da mesma forma, todo o objetivo da obra do Espírito é a visão adequada de Cristo, de sua obra salvífica e de seu senhorio de forma que, mesmo sendo Deus, o Espírito não tome a glória para si, mas a dê para Cristo. Como o próprio Packer diz, o Espírito nunca falará “olhe para mim, escute-me, conheça-me”, mas, sempre, “olhe para ele, escute as palavras dele, conheça a ele, tenha vida nele”. Exclui-se, portanto, toda obra que seja focalizada no suprimento de qualquer experiência ou expectativa padrão dos cristãos. Packer diz que “(...)o Espírito está aqui para glorificar a Cristo e sua tarefa principal e constante é intermediar a presença de Cristo para nós, tornando-nos cônscios de tudo o que Jesus é, de forma a confiarmos que ele será tudo isto para nós” [4]. O próprio Jesus diz isso quando fala da obra do Espírito na última ceia. João 16. 13 e 14 registra muito bem isso, quando relata Jesus dizendo que “(...)quando o Espírito da verdade vier, ele os guiará a toda verdade. Não falará de si mesmo; falará apenas o que ouvir, e lhes anunciará o que está por vir. Ele me glorificará, por que receberá do que é meu e o tornará conhecido a vocês”. Portanto, um primeiro momento da verdadeira obra do Espírito no cristão é a focalização correta de Cristo.
Consequentemente, quando o Espírito me leva a considerar corretamente a Cristo, me leva a um segundo momento de sua obra: a consideração correta de quem eu sou e de quem o outro é. Calvino, em suas Institutas, diz que o conhecimento de Deus e o conhecimento de si estão muito unidos e entrelaçados, de forma que não é tarefa fácil distinguir qual origina e precede o outro. Portanto, quando o Espírito me leva a conhecer a glória, a santidade, a graça, a misericórdia, a humildade e o amor divino através de Cristo e da cruz, me leva também a conhecer a minha pecaminosidade, deficiência, humanidade, finitude, fragilidade e necessidade diária de um salvador. Ter uma visão mais límpida de quem Cristo é e de sua obra salvadora na cruz é ter uma visão mais límpida a cerca de si mesmo. Esse é o conceito da verdadeira santidade. É exatamente por isso que podemos dizer que a centralização do indivíduo e das suas necessidades distorce a imagem que ele tem de si, pois quando o foco ou o parâmetro de santidade não é mais Cristo, não tenho mais com o que contrastar a minha pecaminosidade, portanto, não tenho mais uma visão correta e bíblica de quem sou eu. Quando as minhas necessidades, os meus desejos, os meus egoísmos e as minhas experiências passam a ser o foco, passo a me ver de forma egoísta, o que me abre caminho ao orgulho e à presunção. Da mesma maneira, quando tenho uma imagem distorcida de mim, tenho uma imagem distorcida do outro, pois a partir do momento que experiências e expectativas padrão passam a ser o indicativo de santidade e espiritualidade, eu diminuo e desprezo quem não as tem e, muito pior, considero como a voz de Deus quem as tem, o que me leva de volta a todos os aspectos negativos já considerados. Ao contrário, como já dito, a verdadeira santidade vem da percepção correta de quem Deus é e, consequentemente de quem eu sou e de quem o outro é. Vale ressaltar o conceito que Packer traz sobre a verdadeira santidade: “aumento de santidade significa, entre outras coisas, aumento de sensibilidade para o que Deus é e, consequentemente, uma avaliação mais clara da própria pecaminosidade e das limitações particulares, e daí um reconhecimento intensificado da constante necessidade da misericórdia perdoadora e purificadora de Deus. Todo o crescimento em graça é crescimento para baixo, a este respeito” [5].
Por último, a maneira pela qual o Espírito me leva maturamente a essas duas considerações, a de quem Cristo é e a de quem eu sou, é através do que Paulo considera como superior à busca de dons e manifestações sobrenaturais e chama de “um caminho sobremodo excelente”: a influência do Espírito através da graça comum. Na carta de I Coríntios, Paulo fala da imaturidade e infantilidade da igreja que, mesmo tendo abundância de dons espirituais, os usava de forma desorganizada e exagerada, portanto, no capítulo 13, passa a lhes mostrar um caminho superior. Ele considera a fé, a esperança e amor superiores a qualquer tipo de inspiração sobrenatural, sendo que o maior dos três é o amor. Jonathan Edwards, em sua obra A Verdadeira Obra do Espírito – Sinais de Autenticidade, fala que “ao longo de todo capítulo, ele (Paulo) mostra a grande preferência da graça sobre a inspiração. Deus transmite sua própria natureza à alma mediante a graça salvífica no coração, mais do que por meio de todos os dons miraculosos” [6]. Nisto consiste a graça comum: na caridade ou no amor divinos, que são mostrados na quietude e na simplicidade, num sussurrar do Espírito aos corações contritos e humilhados dos santos na presença de Deus. Sendo, portanto, graça comum, favor imerecido, demonstração do amor de Cristo que só vem através do próprio Cristo e demonstração de um amor salvífico em um coração pecaminoso, todo o motivo de glória e presunção por causa de inspirações sobrenaturais é excluído. Edwards fala que “a imagem bendita de Deus consiste em graça e não em dons” [7]. E isso é um sinal de maturidade na vida do cristão, pois o próprio Paulo fala no capítulo 13 de sua primeira carta aos coríntios, quando está discorrendo sobre a finitude dos dons sobrenaturais, que “quando era menino, falava como menino, pensava como menino e raciocinava como menino. Quando me tornei homem, deixei para trás as coisas de menino”. O próprio Jesus também fala que a verdadeira felicidade dos discípulos não consistia em que expulsassem demônios, mas sim na graça que eles haviam recebido com a vida eterna. Muito maior é seguir a graça comum de Deus do que, como Edwards diz, “um fogo transitório”. Qual é, portanto, a finalidade dos dons extraordinários se não uma influência santificadora do Espírito? Vale a pena também citar uma última frase de Edwards: “de minha parte, preferiria desfrutar durante quinze minutos das influências comuns do Espírito – mostrando-me a divina beleza espiritual de Cristo, sua infinita graça e seu amor sacrificial, estimulando o santo exercício da fé, do amor divino, da amável benevolência e do humilde regozijo em Deus – a ter visões e revelações proféticas o ano inteiro” [8].
Portanto, é necessário que resgatemos como indivíduos e como comunidade a concepção correta de qual é verdadeira obra do Espírito Santo na vida da Igreja. Ela é, pois, a glorificação de Cristo e de sua obra na cruz que me leva à consideração correta e madura de quem Ele é e, de quem eu sou e de quem o outro é. E tudo isso só é possível através da influência da graça comum do Espírito em nossos corações. Que possamos, como Paulo, quando estava comparado todos os seus feitos humanos com o conhecimento de Cristo, dizer:

“Se alguém tem razões para confiar na carne, eu ainda mais (...). Mas, o que para mim era lucro, passei a considerar como perda, por causa de Cristo. Mais do que isso, considero tudo como perda, comparado a suprema grandeza do conhecimento de Cristo Jesus, meu Senhor, por quem perdi todas as coisas”.
                                                                              Filipenses 3. 4b, 7 e 8


[1] PACKER, J.I. Na dinâmica do Espírito Santo – Uma avaliação das práticas e doutrinas. São Paulo: Vida Nova, 2010, pgs. 180 a 185
[2] Ibid, 2010, pgs. 186 a 191
[3] Ibid, 2010, p. 62
[4] Ibid, 2010, p. 63
[5] Ibid, 2010, p. 103
[6] EDWARDS, Jonathan. A Verdadeira obra do Espírito – Sinais de Autenticidade. São Paulo: Vida Nova, 2010, pgs. 89
[7] Ibid, 2010, p. 89
[8] Ibid, 2010, p. 92 

quarta-feira, 9 de março de 2011

Quero ordem, quero caos

Por Karina Lubascher Miragaia

Há muito estou enjoada desse texto. Não como aborrecimento, é enjôo como náusea mesmo. Acho que idéias são assim, você tem que passar mal delas até colocar tudo pra fora, igual em virose.

“Sobre o que é?!”.  Sobre nada, sobre exatamente nada. Sobre tudo. Não me perguntem sobre o que é! Não quero escrever sobre nada, sobre nada que faça sentido. Quero o caos, quero a desconstrução. Mais, quero a inutilidade. Terrível mania essa a de só dar valor ao que faz sentido. De dar valor ao que é útil. O direito ao caos nos foi tirado! Me foi tirado! Quero um texto sem sentido. Quero uma conversa sem sentido. Quero um livro sem utilidade, um beijo desnecessário, é o que eu quero. Não quero mais o peso da utilidade. Não quero fazer sentido. Não quero dizer nada. A vida não quer dizer nada. Quer dizer o que? Nada. O que é o sentido? Não quero mais saber. Perguntar. Eu quero perguntas. Minha defesa é a indagação! Eu quero o caos. Mais além, consciência. Quero consciência do caos, do caos interno, do caos do mundo. Sem conserto, ele não tem conserto. Me faz respirar aliviada. Gosto de não saber. De não entender. Não quero saber o próximo passo. Não quero saber que rumo tomar. “Não saber para onde vais é saber exatamente para onde vais”. Chorar. Quero rir, quero ser triste. Pra que? Quero o óbvio. Quero o nada. Quero o inútil proposital. A tomada de consciência do óbvio encontra-se nos antípodas de toda ingenuidade...”. Quero a essência. Quero o problema. Quero a clareza da pergunta. Quero um texto sem introdução, quero frases sem ordem, não quero conclusões extraordinárias, não quero conclusões. Quero excesso de pontos finais. Não quero sintaxe, não quero parágrafos. Não quero revisar meus textos. Quero textos. Não quero acrescentar, não quero mudar. Não gosto que tentes entender tudo, o tempo todo. Não quero o todo, não quero o tempo. Não gosto de entender. É alívio. É angústia. Gosto do paradoxo. Quero a transparência. Clareza. É nisso que se define o bom pensar, entender o problema. Entender que há um problema. Conviver com o problema. Faz parte de mim, não há respostas. Não gosto de respostas. Quero fracassos. “Olha lá, quem sempre quer vitória e perde a glória de chorar. Eu que já não quero mais ser um vencedor, levo a vida devagar pra não faltar amor”. Quero amor. Quero você. Quero a vida. Quero você sem sentido. Mais, sem utilidade, sem rimas, sem sinônimos. Amor, sem sentido. Não quero ser útil eu também. Você não serve pra nada! Te amo porque não serves. Você não me completa, não quero ser completa. Você me acompanha. Não existe tal coisa como o “completo”. Desajuste, insuficiência, confusão. Não quero Te entender. Quero a Tua falta. “Teu entendimento torna-me insensato”. Gosto do sozinho, do simples. Complexidade é o eu quero. Silêncio. Ah, o silêncio... Stop making sense, é o que eu grito. Vômitos não fazem sentido.

Sentido. Tudo faz sentido. Não interrompes a vida porque, num instante, ela fez sentido. A busca por sentido me caracteriza. Caracteriza a humanidade. A busca. O olhar, o toque, o beijo, a lágrima, me fazem sentido. Tu és sentido. Quero suspirar por aquilo que me faz sentido. O homem, a vida, a alma, tudo num meio caminho entre o completo caos e o completo sentido. Sentido, é isso. Quero a repetição de palavras, quero o novo. Quero achar meu sentido no caos. A ordem me prende à vida, me faz continuar. Quero viver. Achar o meu caminho. Quero a Tua verdade. Quero o certo, quero ser errado.  Caos, é isso. Quero caos no meu sentido. O caos me liberta. Quero a ordem e quero o caos. “Palavras e sentido... a vida está aí”. Palavras. Ah, as palavras... Eu me calo. Vomito. “Falta de sentido, a vida também está aí...”.

terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

Simplicidade

Por Karina Lubascher Miragaia,
dedicado a Bárbara Dias Rigotti

“Meu Deus, como essa ladeira cansa. Nem me diga, menina, nem me diga...”. Foi assim, numa ida à padaria, suada e cansativa, no fim da tarde, na trégua do calor, que surgiu uma conversa daquelas que significam. Ultimamente, tenho tido várias conversas desse tipo, desse tipo de conversa na qual tudo se encaixa, tudo vale a pena, na qual tudo significa. Talvez pela pessoa, pelo assunto, pelo momento. Talvez pelos três, e os três interligados. Existem pessoas que simplesmente sacam, existem assuntos que simplesmente são, existem momentos que simplesmente permitem. Ultimamente, não só conversas, mas muitas coisas têm sido das que significam. Significam em silêncio, em segredo, no escuro, no sussurro, na madrugada, num triz de segundo em que você consegue perceber, entender. Mesmo expondo pro mundo, parece que continua guardado a sete chaves. Ninguém viu, ninguém vê”, foi o que ela disse. Perfeito. Conversas que significam são assim, conversadas no silêncio. E existem pessoas que simplesmente sacam.

Falávamos sobre teatro, cinema, sobre livros. Culpa do momento. Não daquele momento como instante, mas do momento em que se vive. Fala-se do que se gosta, do que se entende, do que ser quer, mas fala-se com paixão do que se vive. Estávamos vivendo aquilo, falávamos, portanto, sobre aquilo. E falávamos com paixão.

“Os filmes que mais mexem comigo são aqueles reais, cotidianos, sem muito alarde, sem muito Hollywood...”. Curioso, acabáramos de ver um daqueles explosivos, com grandes estrelas, muito Hollywood e em quase nada sincero. “Daqueles em que a trilha fala, a luz fala, a fotografia fala, sem ninguém precisar falar demais... Daqueles que ninguém entende? Exato”. Mais do que daqueles que ninguém entende, daqueles que, por entenderem demais, rejeitam. O excesso de realidade choca, incomoda. Confortável é rejeitá-la. Confortável é identificar-se com o amor nobre e quase nada humano de Crepúsculo do que com o anseio, esse sim, excessivamente humano de Closer. Engraçado como odiamos ver-nos representados na arte sincera. Mais do que odiamos, nós ignoramos. “Filme ruim, parado, confuso, muito palavrão, sexo, traição”. Como se a vida não fosse assim.

“Gosto também daqueles autores que, num simples descrever de olhar, de toque, de expressão, te inserem numa complexidade tão real de personagens, que parece que tudo aquilo sempre existiu”. Aquele tipo de livro que não precisa da construção do “era uma vez”, porque só no descrever da fala, do gesto, você já entende o passado, o presente, a mania, o trauma, a realidade. “Detesto livros de auto-ajuda por isso, são tão irreais...”.

“É bem esse o trabalho do ator, sabe. O esforço, o estudo, o talento, tudo pra representar o comum, o banal, o corriqueiro. Isso é extremamente difícil de fazer. Tão mais fácil se jogar gritando no chão ao receber uma notícia ruim do que um simples olhar pro vazio, um calar, e um tapar a boca com a mão...”. O ator, o bom ator, é alguém a se admirar, bem como a capacidade que ele tem de encarnar o real. Afinal, quem é que realmente tem voz pra gritar com uma notícia daquelas, das bem ruins? Muito mais admirável é ver que essa encarnação do real, da família desintegrada, do pai que tem amantes, da mãe desiludida, desgostosa, do filho drogado, do casal que não mais se ama, que nem sequer mais se toca, do casal que finge, do marido que bate, da amante, do adolescente que quer ser aceito, do padre que manipula, do velho amargurado, do amor que não dura pra sempre, do mentiroso, do egoísta, do mesquinho, do confuso, do indeciso, da vida como ela é, da personagem que somos todos os dias, que somos sem esforço algum, que somos simplesmente porque humanos somos, essa exata encarnação do banal e do real é muito mais admirável porque é resultado de um esforço enorme da parte do ator. Admirável e curioso. Curioso saber que é mais fácil interpretar humanos tão perfeitos, tão irreais, humanos tão inumanos, tão assim, tão inexistentes. Mais curioso ainda é ver como preferimos identificarmo-nos com eles, os inexistentes. Curiosíssimo é como alguns rotulam de “chocante, chata, confusa, mentirosa” a arte que revela a realidade escancarada de quem eles exatamente são. “A arte imita a vida, não um circo, e eles ainda não entendem...”.

Acho que conversas que significam são assim, como a arte. Como a boa arte, simples, sem alarde, sem muito Hollywood, reais. Simples como a vida. Simples assim, como numa ida à padaria, suada e cansativa, no fim da tarde, na trégua do calor...e existem pessoas que simplesmente sacam.

quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

Promessa de Ano Novo

Por Karina Lubascher Miragaia

“Você é tão mais engraçada escrevendo”, foi o que ouvi de uma amiga um tempo atrás. Decidi escrever com mais freqüência. Decidi não, prometi. “Promessa de Ano Novo” foi. Promessa de Ano Novo tardia, fiz no dia 9 de janeiro. Prometi pra mim mesma, estou mais acostumada a me decepcionar. “Mas, promessas não se quebram!”. Não quando se tratam dos outros, fica chato explicar-se. Como já me expliquei pra mim milhões de vezes, eu sempre me desculpo. Ou, pelo menos, finjo que explico e finjo que me entendo. Até aí, tudo certo. Agora, voltando à promessa. Melhor, voltando à frase da minha amiga. Talvez eu concorde com ela. Com certeza eu concordo com ela. Eu concordo com ela em partes. Não “mais engraçada”, mas, “mais eu”. Talvez eu seja mais eu escrevendo. Engraçada eu não sou nunca. Não sei como alguém pode ser mais de si mesmo em certos momentos, mas talvez esse alguém possa, em alguns deles, ser só metade de si. Talvez, na frente dos outros, esse alguém realmente seja só metade de si, não fale muito, não se expresse muito, só observe, pra depois ter um turbilhão tagarela de idéias silenciosas pra colocar no papel. Péssimo hábito desse alguém. Ou, talvez, o “colocar no papel” seja somente projeção de quem esse alguém quer ser, mas não é. Esse alguém é um chato então. Mas, talvez, realmente seja mais fácil ser o todo de si quando sozinho consigo e, isso, creio ser comum a todos os alguéns. Sozinho não há medo de expressar-se, de expressar-se totalmente, nos seus podres, nos seus falsos, nos seus amargos. Mente quem diz ser assim na frente de todos. “Sou sincero”, dizem eles. Desculpa pra ser mal educado, inconveniente. Talvez seja “mais fácil” quando sozinho consigo, porque não há ninguém pra convencer, pra discutir, pra concordar, pra discordar ou pra argumentar além de si. E, como já disse, é sempre mais fácil auto entender-se. Escrever é estar sozinho consigo. Escrever é ser o todo de si. É colocar tudo pra fora, é pensar o que se quer, é falar o que se pensa, é ser autoritário. “Quem manda aqui sou eu e ninguém discorda de mim!”. “Ora, ainda podem discordar de você ao lerem seu texto”. Falou precisamente, “ao lerem”. Aí já não é mais escrever, é ler. Ler é, como diz essa minha mesma amiga, algo como “agora já foi”. Você já foi o todo de si, agora tem que lidar com as repercussões causadas pelos que só conhecem sua metade. “As palavras são lâminas de dois gumes, é falar e sujar-se”, disse Adélia Prado. Enquanto você escreve, ninguém opina, é um ato só seu. Enquanto os outros leem, eles opinam, é um ato só deles. Mas, sobre ler eu escrevo em outra ocasião. Escrever é expressar verdades, meias verdades, a busca pela verdade, é tentar achar pressupostos, é assumir pressupostos, é pôr pra fora o caos, é ter direito ao caos, é embelezar o caos, é ser você na palavra, é ser facetas do mesmo você em diferentes palavras, é ser você diferente em cada palavra, é ser o mesmo você em todas as palavras, é saber assumir na palavra o que não se sabe assumir na voz, é ser covarde, é ser extremamente corajoso, é a maneira como você enxerga os fatos, a maneira como você fecha os olhos pra eles, é vomitar parte de si que nunca mais voltará a te integrar, é saber que tudo o que você já escreveu sempre fará parte de você, é luta pra que entendam, mas é jogar a toalha pra deixar que desvendem o seu todo de si. Não somente uma maneira especial de ver as coisas, senão também uma impossibilidade de as ver de qualquer outra maneira”, como bem disse Carlos Drummond de Andrade. Quem sabe ano que vem, no fim do mundo, eu prometa, “ao vivo”, não ser só metade de mim. Mas, esse ano, fiz a promessa de, escrevendo, ser mais de mim. E essa eu pretendo cumprir.

quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

Querido corretor

Por Karina Lubascher Miragaia

Redação FUVEST 2011. Fiz um textinho sem vergonha sobre um tema que era mais ou menos “qual o lugar do altruísmo e da construção do pensamento a longo prazo numa sociedade que caminha ao contrário de tais valores”. Papo de gente falsa.

Adendo para o fato de que redações geram em mim uma terrível claustrofobia ideológica. 30 linhas me sufocam. Talvez, se não impusessem limites, eu escreveria em 20. Mas, por favor, não me digam 30 linhas. Dizem que, quem sabe fazer direito, não precisa exagerar, escreve pouco e diz tudo, afinal, encher lingüiça é pra disfarçar que você não tem mesmo o que dizer. “Menos é mais”, eles dizem. Queria vê-los argumentar isso numa redação de 30 linhas. “E é melhor que você escreva suas brilhantes idéias que brotam milagrosamente em somente 2 horas direto a caneta e sem rasuras, já que não haverá tempo adicional para transcrição. Ah, e escreva bem miudinho: você tem 30 linhas”. Sentença de morte.

Ignorando o fato de que talvez eu realmente não saiba “fazer direito”, gostaria de poder reescrever essa proposta de redação, agora já respirando com mais facilidade. Então, querido corretor, eis o que eu realmente queria dizer:

O fato é que ninguém mais quer alguém discursando que o importante mesmo é você pensar nos outros e salvar o meio ambiente, enquanto uma música triste toca ao fundo e fotos de crianças famintas e à beira da morte aparecem na tela. “O que você faz por essa realidade, hein?”. Lágrimas nos olhos de todos, alguns soluços inconsoláveis dos mais aparecidos. Amanhã você quer mesmo é saber se já curtiram aquela sua foto linda no Facebook, mas que, nossa, você nem reparou que estavam tirando. Fato mesmo é que até isso que acabei de dizer já virou um pouco clichê. O mundo funciona assim, ninguém realmente se importa por realidades que não as suas, talvez momentaneamente, mas quase nunca verdadeiramente. Talvez não haja mais lugar mesmo pro altruísmo e pra construção de pensamento a longo prazo na sociedade hoje, não quando você tem que escrever sobre “construção de pensamento a longo prazo” em 2 horas. Não quando você tem que escrever sobre “construção de pensamento a longo prazo que mudarão realidades futuras” quando não importa realmente o que você escreva, o que importa é que você saiba convencer bem. Percebe-se aí o meu ressentimento com provas de redação.

Talvez o altruísmo não tenha mesmo mais espaço num lugar onde tudo o que importa é “ser feliz”. Tudo o que importa é você, você feliz, você feliz agora. Afinal, você tem que se sentir bem o tempo todo, em tudo o que faz. A tão aclamada e frenética busca pela felicidade é imediatista, individualista, mas também ilusória e frustrante. No fundo, talvez ninguém nunca realmente soube o que é a tal felicidade, como se a alcança, o que se sente quando se a tem. Talvez as pessoas sejam frustradas e infelizes porque o que elas buscam, na realidade, não existe. Não acredito numa humanidade feliz fazendo o que bem entende, por que não acredito numa humanidade que entende o que faz. É isso que a caracteriza como humana. Luiz Felipe Pondé uma vez disse: “Tenho medo de homens e mulheres muito felizes. Homens e mulheres muito felizes não são homens e mulheres”.

Tampouco acredito em quem se anula pelos outros e se diz feliz por isso. Uma vez ouvi que as pessoas só batem na sua porta pra pedir algo porque você tem que aprender alguma lição de vida, uma lição de bondade e compaixão. Quando finalmente aprender, não te pedirão mais nada. Percebe que motivação continua sendo, sempre, você mesmo? A verdade é que a felicidade também não vem por atos heróicos de altruísmo, coragem, honra, atos solidários, puros e de bondade extrema. Talvez porque o ser humano não seja isso, não seja puro, não puramente bom, não seja bom o suficiente, mas seja exatamente isso, ser humano. Afinal, como também já disse Pondé, “a coragem não tem compromisso com a sobrevivência”, e tudo o que nós queremos é isso, sobreviver.

Mas, por mais que eu não acredite em mim ou muito menos em você; por mais que eu não confie na bondade que não busca recompensas dos meus atos altruístas e, logicamente, muito menos dos seus; por mais que eu realmente não ache que seres humanos serão sempre satisfeitos e realizados, sempre se sentirão bem e em paz, sempre estarão certos e sem dúvidas, enfim, por mais que eu não acredite em seres humanos sempre felizes (digo isso porque acredito em seres humanos); por mais que eu não acredite na felicidade, pelo menos não nessa com tantos “sempres”, ou nesta em que faço tudo que quero sem nunca pensar nos outros (falsa em sua essência), ou muito menos naquela em que sempre penso nos outros e nunca realmente faço o que quero (brega, muito brega em sua essência); não, por mais que eu não acredite nessas felicidades, ou não nelas isoladamente; por mais que eu não acredite, e desta vez não mesmo, que, ao ajudarmos os outros, tenhamos sempre que aprender alguma lição de vida misteriosa que o universo quer nos ensinar; por mais que eu não acredite em heróis medievais corajosos (já diz Millor que “herói é aquele que não teve tempo de fugir”) ou em bondosos e angelicais contemporâneos e, por fim, por mais que eu também não acredite na felicidade do ser humano covarde e mesquinho, eu acredito em muitas outras coisas.

Acredito em mim e em você, juntos, e na nessa nossa inconstância e confusão de motivações e sentimentos, certos, errados, egoístas, sim, egoístas e mesquinhos, covardes, mas também bondosos, compassivos, corajosos e, quantas vezes, quão grandemente corajosos, e que, de vez em quando, realmente fazem algo de bom por alguém; acredito que ajudar próximo é muito mais uma questão de bom senso e humanidade do que de alguma força cósmica maluca que insiste em querer ficar nos ensinando coisas; acredito no ser humano que tem a coragem de aceitar sua covardia e, assim, vive muito mais corajosamente do que acredita; acredito que o altruísmo tem o seu lugar quando pararmos de freneticamente querer sermos feliz o tempo todo e simplesmente aceitar que ser humano é isso, eu, você, juntos, tristes, miseráveis, alegres, incertos, certos, errados, chorosos, risonhos, sem paz, com muita paz, bobos, sérios, incontroláveis, confusos, incuráveis, covardes e corajosos, enfim, felizes.

Por fim, acredito em textos assim, que fazem algum sentido, mas não todo, que têm alguma certeza, mas não muita, que têm argumentos, mas não os mais persuasivos, que terminam sem terminar, que concluem sem fechar, que fogem um pouco do foco, que fogem muito do foco, em textos assim, bem como a vida é. Não sei, no fundo, talvez eu não acredite mesmo é em redações. Não as com 30 linhas.